Por PGAPereira.
Começa aqui uma viagem no tempo para desvendar o passado e o presente de nove
doenças, males que já deveriam ter sumido do território pernambucano, mas fazem
parte da rotina em pleno 2012. De década a década, ao longo de 100 anos,
descubra o que revelaram cientistas, conheça artigos de repercussão e atente
principalmente para os personagens reais, sobreviventes de uma injusta e
desigual luta pela vida.A reportagem especial doenças sem fim encontrou
crianças expostas à esquistossomose e toda a sorte de verminose, tomando
banho e fazendo necessidades fisiológicas nos rios porque não têm banheiro em
casa. Descobriu jovens da cidade e do interior com o coração quase parando por
causa de uma doença sem registro obrigatório. Deparou-se com adolescentes
grávidas marcadas pela hanseníase e leishmaniose. Resgatou velhos e
novos herdeiros da doença de Chagas, além de uma nova geração vítima de tracoma
e tuberculose. Foi atrás da quase exterminada filariose, que
ainda atormenta quem mora junto a córregos e esgotos.
DO ESGOTO PARA O CARAMUJO. O pescador André Severino dos Santos, 33
anos, herdou o mal que matou o pai dele há sete meses. Não é congênito, mas
pode se multiplicar em família quando a exposição é repetida de geração em
geração. André e o pai são vítimas da esquistossomose, provavelmente
introduzida no Brasil com o tráfico de escravos africanos, e que encontrou vida
longa em alagados e barrigas pernambucanas. O Estado é campeão brasileiro em mortes
pela doença. Sinal de uma boa vigilância, que não deixa escapar um só registro?
Nem tanto. Más condições sanitárias se perpetuam em pleno desenvolvimento
econômico fruto de governadores incompetentes e semianalfabetos que
desconheciam a realidade de seu povo. Nós pernambucanos tivemos aqui
parlamentares desqualificados para as funções que exerciam, uns arrogantes que
só enxergavam catar votos de pessoas humildes e obedientes e que há séculos não
levantaram uma palha para melhorar o quadro clínico da população miserável e
doentia pernambucana. Tinham poucos conhecimentos em asfaltar ruas e estradas,
trocar lâmpadas de postes e coletar o lixo e jogá-lo em lixões a céu aberto,
mas se a urgência pedia uma ação enérgica na área da saúdes, eles construíam um
posto de saúde e meses depois estavam entregues as baratas e eram esquecidos,
mais um elefante branco no cartão postal da cidade. De 1950, quando foi
realizado o primeiro inquérito nacional sobre a doença, até hoje, a paisagem
mudou um pouco, com casas de alvenaria, energia elétrica, internet e água
encanada. Mas a rede de distribuição não chega a todos e a coleta e tratamento
de esgoto, por onde deveriam escorrer fezes infectadas, é coisa rara. Os órgãos
de comunicação em massa não veiculam informativos sobre como evitar esses tipos
comuns de doenças que assola a Zona da Mata, Litoral e até em comunidades da
metropolitana Jaboatão dos Guararapes, onde há famílias sem torneira ou
banheiro. Pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz constataram nas últimas duas
décadas o Shistossoma mansoni
em caramujos de água doce e em fezes de moradores em toda essa extensão,
inclusive no Recife. Por mês, o principal serviço de referência, o Hospital das
Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco admite oito novos doentes
crônicos, com a forma grave da doença parasitária, etapa na qual o verme já
provocou estragos quase irreparáveis, dilatando vasos do esôfago, matando por
hemorragia digestiva. No Hospital da Restauração, também chegam crianças e
adultos com lesões no sistema nervoso. E no Pronto-Socorro Cardiológico de
Pernambuco (Procape) chama a atenção à hipertensão pulmonar pela esquistossomose.
Não há só amarelos e com barriga d’água. A esquistossomose ganhou outras
feições.
BARRIGA D’ÁGUA E PARALISIA. A presença da esquistossomose entre as
gerações é visível nas pesquisas, nas lembranças de quem sobreviveu à doença e
dos que permanecem expostos a ela. Embora não tenha concluído o novo inquérito
nacional sobre a endemia, a bióloga Constança Simões Barbosa, da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Pernambuco, comprova em seus recentes estudos a
sobrevivência do verme na Zona da Mata e sua franca expansão por todo o
Litoral. A Lagoa do Náutico, em Jaboatão dos Guararapes, é endereço certo do
ciclo interminável homem-esgoto-caramujo-homem, onde o pescador André Severino
dos Santos, 33 anos, primeiro personagem dessa matéria, passa a maior parte do
tempo. Ele é herdeiro da praga que mata cerca de 200 pernambucanos por ano.
Além de ver o pai morrer de hemorragia digestiva por causa do verme, André já
carregou o bicho na barriga e não tem como evitar o contato com a água
contaminada. Evandro Barros, da mesma geração, residente em Gameleira, Zona da
Mata Sul do Estado, está com 35 anos e desde os 18 perdeu o movimento das
pernas porque o xistossomo se alojou na sua medula. Pesquisamos Jaboatão
e Gameleira. O território vizinho da capital, com a segunda maior população de
Pernambuco, e a outra cidade pertence ao grupo das 108 em que a esquistossomose
é endêmica. Na metade do século passado, 86% dos moradores de Gameleira tinham
o verme. Em Jaboatão, 52% estavam na mesma situação. Aquela foi a primeira
grande pesquisa realizada no Brasil para definir a distribuição da verminose,
coordenada por Barca Pellon e Isnard Teixeira, do então Ministério da Educação
e Saúde. A média de positivos, no Estado, foi de 25% e os pesquisadores
presumiram, então, que um quarto dos pernambucanos estavam infestados. Foram
testadas em 50.365 pessoas em idade escolar e 608 de outras faixas etárias.
Nada menos que 12.752 tinham o xistossomo. Os trabalhos, dirigidos pelos
médicos Lessa de Andrade e Orlando Parahym, não encontraram muita distinção
entre sexo, cor e residência rural ou urbana. Sessenta e um anos depois, o
Programa de Enfrentamento das Doenças Negligenciadas da Secretaria de Saúde de
Pernambuco encontrou 8.414 infestados, nos municípios endêmicos, num universo
de 165.458 exames realizados. São agora 5% positivos para o verme, índice
quatro vezes menor, mas inaceitável. No intervalo de seis décadas, a
responsabilidade pelo controle da esquistossomose saiu de mãos federais
para municipais. Em vez dos guardas sanitários da Sucam (depois chamada
Funasa), foram os agentes de endemias, contratados pelas prefeituras, que
passaram a entregar de casa em casa recipientes,potes,
para coleta de fezes. Mas os resultados dos exames nem sempre chegaram a tempo
hábil no endereço certo. E as condições sanitárias não mudaram totalmente.
Resultado: muitas famílias só descobrem a esquistossomose pela autópsia,
com a morte do enfermo. A hipertensão pulmonar é uma delas. E foi
esse mal que fez o jardineiro Aurélio Olímpio Gomes, 45 anos, morador do Cabo
de Santo Agostinho, descobrir que é portador do xistossomo. Há 12 anos,
andando de bicicleta, passou mal e caiu. Procurou a agente de saúde e foi
examinado pelo médico do posto perto de casa. De lá, foi encaminhado ao
Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco, onde vez por outra se interna
passando mal. Na cidade de Gameleira, as múltiplas faces da doença também se revelam
como a que deixou Evandro sem andar. O hoje auxiliar de serviços gerais,
funcionário público do município, anda com a ajuda de muletas. "Aos 18
anos, deu uma dor forte nas costas. Achava que era problema de coluna. No
segundo dia, perdi força nas pernas e caí. No Hospital de Ribeirão (cidade vizinha),
o médico me perguntou se eu tinha tomado banho de rio. Suspeitou da esquistossomose".
A suspeita confirmou-se no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de
Pernambuco, onde passou quase dois meses internado. Evandro tomava banho no Rio
Sirinhaém e não sabia do risco de contrair a doença. "Só agora sei que o
verme se aloja no caramujo e dele passa pra gente. Depois de muita fisioterapia
consegui sair da cama", conta. As lesões neurológicas são raras, mas numa
região endêmica tornam-se mais comuns, explica a médica Ana Lúcia Coutinho, do
Hospital das Clínicas, que se dedica à esquistossomose como fez seu pai,
Amaury Coutinho. Por mês, indigna-se a médica, são oito novos casos crônicos
admitidos no ambulatório de gastroenterologia da unidade de saúde, depois de
uma hemorragia ou de outra complicação séria, descobrindo só assim a condição
de portador. No início do século passado, a situação era pior. O diagnóstico da
esquistossomose era dado após a morte do paciente, segundo registros da cadeira
de anatomia patológica da Faculdade de Medicina do Recife, assinados por outro
Coutinho, Aluízio Bezerra, primo de Amaury.
TRATAMENTO
COLETIVO. Sem saneamento básico em grande parte de sua extensão – só pouco mais
de um terço dos domicílios estão ligados à rede coletora de esgoto–, não resta
outra arma para conter a transmissão da esquistossomose em Pernambuco, a
não ser tratar as pessoas infestadas pelo verme. Mas a estratégia defendida
pelo Estado, com a conivência do Ministério da Saúde, mal começou e já atrai
muitas críticas. "É louvável a intenção, mas existem muitas dificuldades
na prática", diz a agente de saúde de Gameleira. Além de temer reações nos
moradores sem que haja médico de retaguarda o tempo todo, Lucineide lembra que
há uma contradição. Ela tem que orientar a comunidade a só tomar remédio
prescrito pelo médico e agora, com o tratamento em massa, tem que convencer as
famílias a tomar os comprimidos contra o verme da esquistossomose sem
receita e sem comprovação de que a pessoa está infestada. Gameleira,
na Mata Sul, tem 27.912 moradores. O Censo 2010 do IBGE encontrou 545
domicílios sem banheiro e 1.195 abastecidos com poço ou nascente fora da propriedade.
Jaboatão dos Guararapes é a segunda cidade mais
populosa do Estado, com 649.787 habitantes. Lá, há 79.067 casas com banheiro
ligado à fossa rudimentar e 51.169 à rede de esgoto ou pluvial.
VERMINOSES - A diminuição da miséria, com a inclusão de pernambucanos em
programas sociais como o Bolsa Família, é uma realidade. De fato, mesmo diante
da prolongada seca deste ano – a maior dos últimos 85 anos - é possível
constatar a diferença em ter R$ 70,00 ou R$ 160,00 no bolso quando não é
possível tirar do campo o alimento. Entretanto, a longa estiagem revela no
Agreste e Sertão que o bem mais básico ainda falta na torneira de muita gente:
a água potável. A sede é saciada com água barrenta, de açudes quase esgotados, ou
de fontes duvidosas, como a da casa onde vive o garoto Jocivan da Silva (foto),
seus pais e oito irmãos, no Sertão do Araripe. No interior, ainda é comum andar
léguas a pé para buscar água, carregar latas na cabeça ou recorrer da moto ou
jumento. E nem sempre em condições de consumo humano com água salgada (salobra)
e constituição do próprio solo local com muito arsênio venenoso, outros metais e
até mofos de água do subsolo há muito retesada. O problema todo está nas
escolhas dos secretários das cidades e de obras os quais constroem açudes com
poucas profundidades com vários metros o que acarreta evaporação de toda a água
coletada pela irradiação solar – em vez de uma profundidade maior e correta de
100 metros atingindo até poços artesianos. As centenas de milhares de cisternas
entregues a população rural – coleta de água pelo telhado com urinas e fezes de
ratos e gatos, caneletas e armazenamento em caixas d’água baseada no solo (um
tanque de procriação de vermes) não é lá uma idéia boa, isto porque trás muitas
enfermidades além do lodo que causa doenças renais degenerativas. Na Zona
da Mata e Grande Recife, nem precisa o clima ir ao extremo para enxergar os problemas.
Nas áreas urbanas das cidades grandes, as famílias vão driblando o racionamento
d'água. Lavar as mãos antes das refeições e depois de ir ao banheiro é teoria
difícil de cumprir até mesmo nas escolas, onde as gerações recebem as primeiras
lições de saúde. O que corre nos rios e canais também exala o mau cheiro do
lixo e das fezes. O pleno crescimento não universalizou banheiro nem esgoto
recolhido e tratado. O resultado é que lombrigas, giárdia, ameba e até o
amarelão estão se multiplicando nos intestinos. Vermes e protozoários menos
agressivos que o xistossomo, mas com real poder de adoecimento,
permanecem como no passado. Em menor proporção, mas em condições de estragar o
crescimento saudável das crianças.
AMARELÃO - De cada 100 pessoas que vivem em 58% dos municípios
pernambucanos, sete têm algum tipo de verme na barriga. Nessa conta não entra o
xistossomo, e dependendo do saneamento básico oferecido, a infestação
pode ultrapassar 10% dos moradores. Rios limpos, esgoto coletado e tratado,
frutas e verduras cultivadas longe de coliformes fecais, mãos e unhas bem
asseadas, água clorada, tudo isso que constitui a condição ideal para evitar a
transmissão de verminoses, não se aplica a áreas de racionamento, seca e pouca
educação. Por isso, o amarelão, que aparece apenas em livro de ciências
(que as escolas teimam em não dá uma importância relevante), também tem seu
espaço em pleno 2012, na mesma área endêmica para a esquistossomose. Os secretários
de educação de Pernambuco, uns desqualificados para essa função, não prestaram
contribuição alguma como medida profilática para a erradicação dessas
enfermidades tão perigosas, mal sabiam confeccionar bandeirinhas de festa de
São João, desfile do 7 de setembro e teatrinhos de veados. Culpado por toda
essa desgraceira foram os governadores de Pernambuco. Segundo o Programa
Estadual de Enfrentamento das Doenças Negligenciadas (Sanar), de 165.458
pessoas submetidas a exame de fezes entre 2011 e 2012, 12.554 tinham
verminoses, sendo os mais frequentes os ascarídeos ( lombriga), os triquiuros
e o ancilóstomo (amarelão). Embora sejam indicador de doença, o SUS não
faz registro desses parasitas no sistema de informação. O Estado fica então sem
saber quantos casos positivos foram tratados. O coordenador do Sanar, Alexandre
Menezes, revela que as áreas com maior frequência do amarelão são a Região
Metropolitana (Jaboatão, Cabo, Goiana e Igarassu) e Zona da Mata (Aliança,
Belém de Maria, Bom Jardim, Catende, Cortês, João Alfredo, Paudalho e Vitória).
É menos frequente no Agreste, mas com registro importante em Gravatá, Bom
Conselho, Correntes e Garanhuns. Dossiê mapeando áreas com maior incidência de esquistossomose
e demais parasitoses será encaminhado pela Saúde aos responsáveis, no governo,
pelo saneamento, para auxiliar na definição de obras que melhorem as condições
de vida das comunidades, informa Menezes. Na década de 50, no inquérito
realizado por Barca Pellon e Isnard Teixeira, do Ministério da Educação e
Saúde, as lombrigas estavam presentes nas fezes de 97,14% dos escolares da Zona
da Mata e Litoral e o amarelão, em 46,96%. O pescador André compreendeu
há 11 meses, com a morte do pai, o poder devastador da doença. "Para essa
lagoa (a do Náutico) ficar livre do xistossomo, é preciso tratar o
canal, tirar os esgotos", compreende. Tem medo de entrar nela? "Medo
eu tenho, mas vou fazer o quê?", responde, com a responsabilidade de criar
três filhos e a mulher, todos dependentes da pesca. Antes, a situação era pior.
Há um ano morava às margens do lago e convivia com o caramujo transmissor da doença
em tempo integral. Um projeto de ampliação viária na cidade acabou transferindo
para outro lugar André e dezenas de moradores.
GIÁRDIA E AMEBA - No Recife, a
Secretaria Municipal de Saúde encontrou algo mais examinando as fezes de
escolares. Nada menos que 24% das crianças tinham giárdia ou ameba,
protozoários. A proporção foi maior que a de vermes (12% de infestação). Na
ação feita em parceria com o Programa de Saúde da Escola, após campanha
educativa nos colégios, 500 potes para coleta de fezes foram distribuídos, mas
menos da metade (221) retornou com material para o laboratório. Ameba e
giárdia não recebem a atenção merecida. A própria OMS não definiu critérios
para tratamento em massa. Quando o assunto é verme, recomenda tratar
coletivamente escolas onde 20% dos examinados forem positivos. Mas será que
vale tratar todo mundo apenas sem melhorar as condições sanitárias das unidades
de ensino, por exemplo? "Estamos refletindo sobre a melhoria da estrutura
das escolas e sua grade curricular", questiona Antônio Leite, gerente de
Vigilância Epidemiológica. No Recife esgoto a céu aberto estava presente no entorno
de 16,7% dos domicílios particulares permanentes urbanos, segundo o Censo 2010
do IBGE. São 5,7 pontos acima da média nacional de 11,0%. Na capital vivem
1.537.704 pessoas.