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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Febre reumática em Pernambuco



por Paulo Gomes de Araújo Pereira. Como pode uma amigdalite destruir válvulas do coração ao ponto de liquidá-lo com o tempo? Por que crianças e adolescentes deixam de tomar a cada 21 dias uma injeção que custa menos de R$ 1,00 e poderia livrá-los da morte decretada? Pois é, um problema relativamente simples é negligenciado por décadas, fabricando sofrimento, morte e custo altíssimo ao SUS. Esse enigma chama-se febre reumática, esquecida dos programas de saúde no Brasil, mas que atrofia corações limita jovens, mães e pais de família, mata, deixa órfãos sem que uma ação enérgica seja adotada. Nas enfermarias do Imip e do Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco, no Recife, histórias sem um final feliz são contadas todos os dias, com rostos diferentes, da região metropolitana, Mata, Agreste ou Sertão. João Inácio, 32 anos, e duas irmãs são personagens desse drama. Quando ele tinha 3 anos de idade, o coração passou por uma plástica, para diminuir lesões em duas válvulas cardíacas. Uma irmã, de 29 anos, não fez cirurgia ainda, mas vive cansada, sente dores frequentes nas articulações. A outra mora em São Paulo, ignorando a enfermidade. Nenhum deles conseguiu aposentadoria por invalidez. João faz bico de gari porque não consegue ficar empregado – falta com frequência em razão da febre e dor. Luciene também não consegue permanecer muito tempo como empregada doméstica. Eles não fazem a profilaxia. Esquecem ou encontram dificuldade para tomar a penicilina benzatina, medicamento liberado no mundo há mais de 50 anos. E o pior é que a história se repete. Tamirez Kaiane Silva, 9 anos, de Altinho, Agreste do Estado, teve implantada uma válvula no coração no último dia 20 de abril. "Em novembro do ano passado ela ficou com febre, dor na garganta. Depois inchou as pernas, perdeu muito peso. De 23 quilos chegou a 18. "Não tinha fé de levar ela viva pra casa", conta a mãe, Anadilza Maria da Conceição. Em outros países há aplicação em massa do antibiótico para proteger as crianças. No Brasil a ocorrência de febre reumática sequer é de registro obrigatório, fato que fez o cardiologista de maior experiência com a enfermidade em Pernambuco escrever uma carta à presidente da república.
Primos no sangue e na dor ignorada - Manoel Alexandre de Lima, 23 anos, internado desde junho no Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco (Procape). Samuel Araújo de Lima, 15, hospitalizado dois meses antes na pediatria do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). Sobrenomes iguais, doença idêntica. Primos, Manoel e Samuel, naturais de Triunfo, no Sertão do Pajeú, filhos de agricultores, têm válvulas do coração estragadas pela febre reumática e vieram ao Recife, separadamente, submeter-se a novas cirurgias. A doença, que desde 1966 deixou de ser considerada rara em Pernambuco, a partir de estudo do patologista Vital Lira, permanece em alta sem que seja levada a sério pelas políticas de saúde. No hospital onde Manoel se trata Procape, 90% dos leitos de uma enfermaria de doenças valvares são dedicados a adultos vítimas da febre, que é uma reação do sistema imunológico à infecção pela bactéria estreptococo. Os antígenos do microrganismo se confundem com a fibra cardíaca, que passa a ser atacada, gerando inflamações, granulomas e rigidez das válvulas, especialmente a mitral. O germe "planetário", como define o professor Vital Lira, hoje com 78 anos, existe em todo lugar e não deve ser extinto, pois faz parte de uma cadeia biológica também benéfica ao homem e ao ambiente. O contato desastroso com o estreptococo é frequente na infância e adolescência, quando inicialmente causa faringite. Mal diagnosticada e sem tratamento adequado, acaba gerando dores articulares e evoluindo para pericardites, endocardites e espessamento de válvulas. A doença também pode causar pielonefrite (inflamação dos rins) e consequente insuficiência renal. O pior dessa história é que a prevenção é fácil, com uso de um antibiótico antigo, simples e barato, a penicilina benzatina. Mas o acesso a ela é difícil, burocratizado, centralizado por causa de uma celeuma em torno do risco de reação alérgica, comum também a analgésicos de venda e uso livre. Como têm que tomar uma injeção a cada 21 dias, os doentes precisam ir a um hospital e se não houver médico de plantão, ninguém aplica. "Vital Lira provou que a febre reumática era doença também em clima tropical. No início do século passado achava-se que o mal era dos países frios", explica Lurildo Saraiva, 62, professor de cardiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Aluno de Vital, aprendeu com ele todas as lesões que a enfermidade é capaz de causar. Na prática de mais de 40 anos, conhecendo a história social dos pacientes, constatou que no Brasil a doença está muito associada à pobreza. Continua viva, apoiada na negligência dos governos com a população rural e das favelas urbanas. No ano passado, impaciente com uma realidade ignorada, escreveu à presidente, apelando em favor das novas gerações. Saraiva tem de cor a história de muitos pacientes, vivos ou mortos. Uma delas reúne três irmãos, de Camaragibe. João Inácio Xavier, Maria Luciene e Lucivânia. Hoje são adultos, mas adoeceram na infância e continuam expostos ao mal porque não cumprem a profilaxia com a injeção periódica. A renda per capita da família é de R$ 102,00.
Samuel, o garoto internado no Imip, vive no Sítio Lajes, em Triunfo. E se deparou com a febre reumática aos 3 anos de idade. "Começou com inchaço nos joelhos. Ele sentia muita dor. Depois inchou o rosto. Minha irmã levou ao médico de lá, mas ele não entendia o que era. Depois descobriram e trouxeram Samuel para o Recife. Aos 7 anos ele fez a primeira cirurgia", conta o irmão Alfredo Lima, 29, que acompanha o menino, órfão de mãe desde o primeiro ano de vida. Em abril último Samuel trocou a válvula pela quarta vez. "Eu gosto de ir à escola. Quero ser historiador", diz. Está na oitava série, mas, por conta da doença, que o deixa cansado e exige internamentos no Recife, perde aulas. No dia da entrevista, alegrava-se ao matar o tempo jogando num laptop, cedido pelo projeto de extensão Saúde e Saber, da Faculdade Fafire (particular), que visita enfermarias do Imip.A médica de Samuel, cardiologista pediátrica surpreende-se há 25 anos consecutivos com a sina de crianças e jovens, tão precocemente submetidos à frustração, a uma vida limitada, sofrida. "É vergonhoso. Eles nascem com o coração normal e por uma dor de garganta que poderia ser tratada ficam assim. Por ano recebo 50 a 60 novos casos. O SUS gastou R$ 232,1 milhões de 2005 a 2007 com cirurgias cardíacas relacionadas à febre reumática. O custo social é muito maior." Os médicos usam válvula de porco na maioria das vezes, que tem vida curta de 36 meses em média. A mecânica, mais duradoura, nem sempre pode ser usada porque exige muitos cuidados, uso diário de anticoagulantes, tornando-se inadequada em famílias pobres, com baixa instrução, que vivem em habitações precárias, sem saneamento básico e assistência médica perto de casa, longe da capital. De troca em troca, o coração vai cansando e exigindo substituição completa. Muitos morrem antes disso. Diana Lamprea, responsável pela enfermaria de valvulopatias do Procape, recebe doentes da capital e do interior, de 18 a 70 anos. E com frequência ouve deles que até então não sabiam da febre reumática. Também assiste à luta, quase inglória, de conquistar a aposentadoria por invalidez. Manoel, o primo de Samuel, descobriu a febre reumática aos 12 anos, fez a primeira cirurgia aos 14 anos e na semana da visita da reportagem ia colocar duas válvulas. Casado, pai de um filho desafia a doença lidando com a terra seca, com a falta d’água, sangrando pelo nariz, cansando nas 24 horas do dia. Triunfo, cidade turística do Sertão do Pajeú, tem 15.006 habitantes, com 47,5% deles vivendo em área rural. Os jovens de 6 a 24 anos correspondem a 34,7%. E 17% dos que têm 15 anos ou mais não sabem ler nem escrever, levantou o IBGE em 2010.

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