por Paulo Gomes de Araújo Pereira. Como pode uma amigdalite destruir válvulas do
coração ao ponto de liquidá-lo com o tempo? Por que crianças e adolescentes
deixam de tomar a cada 21 dias uma injeção que custa menos de R$ 1,00 e poderia
livrá-los da morte decretada? Pois é, um problema relativamente simples é
negligenciado por décadas, fabricando sofrimento, morte e custo altíssimo ao
SUS. Esse enigma chama-se febre reumática,
esquecida dos programas de saúde no Brasil, mas que atrofia corações limita
jovens, mães e pais de família, mata, deixa órfãos sem que uma ação enérgica
seja adotada. Nas enfermarias do Imip e do Pronto-Socorro Cardiológico de
Pernambuco, no Recife, histórias sem um final feliz são contadas todos os dias,
com rostos diferentes, da região metropolitana, Mata, Agreste ou Sertão. João
Inácio, 32 anos, e duas irmãs são personagens desse drama. Quando ele tinha 3
anos de idade, o coração passou por uma plástica, para diminuir lesões em duas
válvulas cardíacas. Uma irmã, de 29 anos, não fez cirurgia ainda, mas vive
cansada, sente dores frequentes nas articulações. A outra mora em São Paulo,
ignorando a enfermidade. Nenhum deles conseguiu aposentadoria por invalidez.
João faz bico de gari porque não consegue ficar empregado – falta com frequência
em razão da febre e dor. Luciene também não consegue permanecer muito tempo
como empregada doméstica. Eles não fazem a profilaxia. Esquecem ou encontram
dificuldade para tomar a penicilina
benzatina, medicamento liberado no mundo há mais de 50 anos. E o pior é que
a história se repete. Tamirez Kaiane Silva, 9 anos, de Altinho, Agreste do
Estado, teve implantada uma válvula no coração no último dia 20 de abril.
"Em novembro do ano passado ela ficou com febre, dor na garganta. Depois
inchou as pernas, perdeu muito peso. De 23 quilos chegou a 18. "Não tinha
fé de levar ela viva pra casa", conta a mãe, Anadilza Maria da Conceição.
Em outros países há aplicação em massa do antibiótico para proteger as
crianças. No Brasil a ocorrência de febre reumática sequer é de registro
obrigatório, fato que fez o cardiologista de maior experiência com a
enfermidade em Pernambuco escrever uma carta à presidente da república.
Primos no sangue e na dor ignorada - Manoel Alexandre de Lima, 23 anos, internado
desde junho no Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco (Procape). Samuel Araújo
de Lima, 15, hospitalizado dois meses antes na pediatria do Instituto de
Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip). Sobrenomes iguais, doença
idêntica. Primos, Manoel e Samuel, naturais de Triunfo, no Sertão do Pajeú,
filhos de agricultores, têm válvulas do coração estragadas pela febre reumática
e vieram ao Recife, separadamente, submeter-se a novas cirurgias. A doença, que
desde 1966 deixou de ser considerada rara em Pernambuco, a partir de estudo do
patologista Vital Lira, permanece em alta sem que seja levada a sério pelas
políticas de saúde. No hospital onde Manoel se trata Procape, 90% dos leitos de
uma enfermaria de doenças valvares são dedicados a adultos vítimas da febre,
que é uma reação do sistema imunológico à infecção pela bactéria estreptococo. Os antígenos do microrganismo se confundem
com a fibra cardíaca, que passa a ser atacada, gerando inflamações, granulomas e rigidez das válvulas,
especialmente a mitral. O germe "planetário", como define o professor
Vital Lira, hoje com 78 anos, existe em todo lugar e não deve ser extinto, pois
faz parte de uma cadeia biológica também benéfica ao homem e ao ambiente. O
contato desastroso com o estreptococo é frequente na infância e adolescência,
quando inicialmente causa faringite. Mal diagnosticada e sem tratamento
adequado, acaba gerando dores articulares e evoluindo para pericardites,
endocardites e espessamento de válvulas. A doença também pode causar
pielonefrite (inflamação dos rins) e consequente insuficiência renal. O pior
dessa história é que a prevenção é fácil, com uso de um antibiótico antigo,
simples e barato, a penicilina benzatina.
Mas o acesso a ela é difícil, burocratizado, centralizado por causa de uma
celeuma em torno do risco de reação alérgica, comum também a analgésicos de
venda e uso livre. Como têm que tomar uma injeção a cada 21 dias, os doentes
precisam ir a um hospital e se não houver médico de plantão, ninguém aplica. "Vital
Lira provou que a febre reumática era doença também em clima tropical. No
início do século passado achava-se que o mal era dos países frios",
explica Lurildo Saraiva, 62, professor de cardiologia da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de Pernambuco. Aluno de Vital, aprendeu com ele todas
as lesões que a enfermidade é capaz de causar. Na prática de mais de 40 anos,
conhecendo a história social dos pacientes, constatou que no Brasil a doença
está muito associada à pobreza. Continua viva, apoiada na negligência dos
governos com a população rural e das favelas urbanas. No ano passado, impaciente
com uma realidade ignorada, escreveu à presidente, apelando em favor das novas
gerações. Saraiva tem de cor a história de muitos pacientes, vivos ou mortos.
Uma delas reúne três irmãos, de Camaragibe. João Inácio Xavier, Maria Luciene e
Lucivânia. Hoje são adultos, mas adoeceram na infância e continuam expostos ao
mal porque não cumprem a profilaxia com a injeção periódica. A renda per capita
da família é de R$ 102,00.
Samuel, o
garoto internado no Imip, vive no Sítio Lajes, em Triunfo. E se deparou com a
febre reumática aos 3 anos de idade. "Começou com inchaço nos joelhos. Ele
sentia muita dor. Depois inchou o rosto. Minha irmã levou ao médico de lá, mas
ele não entendia o que era. Depois descobriram e trouxeram Samuel para o Recife.
Aos 7 anos ele fez a primeira cirurgia", conta o irmão Alfredo Lima, 29,
que acompanha o menino, órfão de mãe desde o primeiro ano de vida. Em abril
último Samuel trocou a válvula pela quarta vez. "Eu gosto de ir à escola.
Quero ser historiador", diz. Está na oitava série, mas, por conta da
doença, que o deixa cansado e exige internamentos no Recife, perde aulas. No
dia da entrevista, alegrava-se ao matar o tempo jogando num laptop, cedido pelo
projeto de extensão Saúde e Saber, da Faculdade Fafire (particular), que visita
enfermarias do Imip.A médica de Samuel, cardiologista pediátrica surpreende-se
há 25 anos consecutivos com a sina de crianças e jovens, tão precocemente
submetidos à frustração, a uma vida limitada, sofrida. "É vergonhoso. Eles
nascem com o coração normal e por uma dor de garganta que poderia ser tratada
ficam assim. Por ano recebo 50 a 60 novos casos. O SUS gastou R$ 232,1 milhões
de 2005 a 2007 com cirurgias cardíacas relacionadas à febre reumática. O custo
social é muito maior." Os médicos usam válvula de porco na maioria das
vezes, que tem vida curta de 36 meses em média. A mecânica, mais duradoura, nem
sempre pode ser usada porque exige muitos cuidados, uso diário de
anticoagulantes, tornando-se inadequada em famílias pobres, com baixa
instrução, que vivem em habitações precárias, sem saneamento básico e
assistência médica perto de casa, longe da capital. De troca em troca, o
coração vai cansando e exigindo substituição completa. Muitos morrem antes disso.
Diana Lamprea, responsável pela enfermaria de valvulopatias do Procape, recebe
doentes da capital e do interior, de 18 a 70 anos. E com frequência ouve deles
que até então não sabiam da febre reumática. Também assiste à luta, quase
inglória, de conquistar a aposentadoria por invalidez. Manoel, o primo de
Samuel, descobriu a febre reumática aos 12 anos, fez a primeira cirurgia aos 14
anos e na semana da visita da reportagem ia colocar duas válvulas. Casado, pai
de um filho desafia a doença lidando com a terra seca, com a falta d’água,
sangrando pelo nariz, cansando nas 24 horas do dia. Triunfo, cidade turística do Sertão
do Pajeú, tem 15.006 habitantes, com 47,5% deles vivendo em área rural. Os
jovens de 6 a 24 anos correspondem a 34,7%. E 17% dos que têm 15 anos ou mais
não sabem ler nem escrever, levantou o IBGE em 2010.
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