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domingo, 3 de fevereiro de 2013

Leishmaniose em Pernambuco




por Paulo Gomes de Araújo Pereira. Esquecida há décadas até entre as negligenciadas, a leishmaniose entrou na vida do pequeno Kevelly, de 5 anos, e do seu pai, o agricultor Ivan José da Silva. Nascidos na zona canavieira foram expostos à doença transmitida por um mosquito quase invisível, que ataca humano porque perdeu o endereço original. Estudos sobre o vetor, iniciados na década de 50, provam hoje a relação estreita dos novos focos da doença com a derrubada da mata nativa. A população, por sua vez, acredita que a função dos guardas de endemias da Funasa, hoje delegada a prefeituras, não é cumprida. O tratamento também esbarra na carência de pessoal nos serviços de saúde. Amaraji, foco de estudo na década de 90, não é a única cidade com constante transmissão. Há leishmaniose nos municípios vizinhos e na Região Metropolitana. Em Igarassu, no Grande Recife, profissionais de saúde aprenderam com um surto descoberto há quatro anos que até hoje rende novos doentes. Lá, o trabalho conjunto da atenção básica com a comunidade e a unidade da Fundação Oswaldo Cruz no Recife mostra como um sistema unificado de saúde pode favorecer a descoberta e o acompanhamento de novas doenças. A experiência faz a Unidade de Saúde da Família de Três Ladeiras ser procurada por moradores de cidades vizinhas. A outra versão da leishmaniose, interna doentes mais graves. É a visceral, que afeta o aparelho digestivo, com ocorrências nos hospitais universitários (Hospital das Clínicas, da UFPE, e Oswaldo Cruz, da UPE). Até no Sertão já foram diagnosticados casos de leishmaniose. Embora em acelerada expansão, nenhuma das formas da doença foi incluída no Programa de Enfrentamento das Doenças Negligenciadas do Estado. O coordenador José Alexandre de Menezes afirma que, mesmo não estando no pacote, a doença é alvo de ações da Secretaria Estadual de Saúde. Já o Ministério da Saúde está querendo recuperar o tempo perdido nas décadas atrás. Oferece financiamento a projetos de pesquisas que inovem no tratamento e na prevenção. Até vacina faz parte das metas a alcançar. Governadores inescrupulosos estão levando a saúde dos pernambucanos a um escalabro perigosíssimo. A população interiorana de Pernambuco não encontra postos de saúde capacitados para atendê-la e encaminhá-la a hospitais públicos. São poucos os casos efetivamente solucionados, para não dizer quase nenhum apoio a população pernambucana.
Desalojando os mosquitos - Em Amaraji, cidade onde na década de 90 pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz de Pernambuco conseguiram elementos para estudar amplamente a transmissão da leishmaniose tegumentar (cutânea), inclusive isolando pela primeira vez o protozoário leishmânia, resquícios da doença são fáceis de encontrar entre sua população de 21.939 habitantes, segundo o último Censo do IBGE. No hospital municipal, basta uma conversa rápida com o enfermeiro de plantão para saber que a moléstia não é coisa do passado. E não é mesmo, garante a vice-prefeita Bernadete Brito, responsável também pela vigilância epidemiológica municipal. "Nosso município é endêmico, em razão do desmatamento que vem ocorrendo há mais de 20 anos", comenta. A doença está presente na zona rural, em assentamentos mais recentes e especialmente onde há bananeiras. A cultura da cana, que desmata, desalojando os mosquitos silvestres expõe e protege ao mesmo tempo. Uns acreditam que o agrotóxico usado na cultura afugenta o minúsculo mosquito da leishmaniose. Edileuza Brito, pesquisadora do Centro Aggeu Magalhães (unidade da Fiocruz), é a responsável pelo isolamento do agente causador. Ela explica que desde a década de 50, quando Durval Lucena estudou o mosquito transmissor na cidade de Igarassu, no Grande Recife, até os dias atuais, há dificuldade de encontrá-lo infectado. Amaraji é referência nas pesquisas por ter transmissão por mais de uma década. Essa convivência permanente fez ao menos moradores e profissionais de saúde ficarem mais atentos ao problema. "Percebemos que a transmissão está mais controlada. Entre abril e maio registramos oito casos", conta Bernadete Brito, da epidemiologia municipal. Segundo ela, as equipes do Programa Saúde da Família são comprometidas e há a parceria com o Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc), da Universidade de Pernambuco, e a Fiocruz. O tratamento é fornecido na cidade (o doente toma por 20 dias a medicação injetável, como se fosse uma quimioterapia). Mas muitos casos são levados ao Huoc, no Recife, contribuindo para estudos das duas instituições.
A herança perversa que comprovamos nas famílias chagásicas e vítimas de esquistossomose, já descrita nessa reportagem, revela-se também na leishmaniose, precisamente num território onde um quarto da população recebe no máximo um salário mínimo. Seguindo orientação dos profissionais de saúde do município, chegamos ao Engenho Raíz Nova, depois de meia hora rodando por estrada de barro, um verdadeiro labirinto cercado por cana-de-açúcar. O endereço é do casal Roseli Josefa da Silva, 32 anos, e Ivan José da Silva, 35, agricultores que herdaram a propriedade de familiares. Eles têm dois filhos, Eliel Ivan da Silva, o mais velho, com 12 anos, e Kevelly Ivan da Silva, 5. O caçula tem uma ferida na perna esquerda, que está fechando, e é o mais novo herdeiro da leishmaniose. Há seis anos foi a vez do pai. "Confirmamos no Hospital Universitário Oswaldo Cruz, no Recife, depois de passar por um médico daqui", conta Roseli, duplamente vítima da negligência do Brasil com sua população rural. Além de cuidar do marido há seis anos e agora do filho caçula com leishmaniose, ela também já foi vítima de outra doença típica da Zona da Mata pernambucana, a esquistossomose. "Nesse tempo morava no Riacho do Sul, tomava banho de rio. Agora só pego água de cacimba", conta. Bem perto da casa dos Silvas, mas já no limite com Cortês, cidade vizinha, encontramos outras famílias marcadas pela leishmaniose. José Joaquim de Oliveira, 41 anos, disse que teve uma ferida profunda. A amiga Irene Silva, 58, moradora do Engenho Limão, já em Cortês, apresenta a neta Amanda Maria da Silva, de 15 anos, grávida de cinco meses, com uma cicatriz no joelho que está ganhando a forma de ferida novamente. "No ano passado tomei 40 injeções, essa ferida doía muito", conta a menina, temerosa de ter a doença agora durante a gestação. A avó diz que na região "todo mundo é vacinado por essa pereba", e se queixa das dificuldades para ter acesso a médico na sua cidade. "É um sufoco." Edileuza explica que a baixa imunidade pode reativar a doença. Pode ser o caso de Amanda. A falta de médicos em horário integral nos postos de Saúde da Família não é exclusividade de Cortês. Praticamente em quase todo o interior é assim que funciona, em razão da baixa oferta de mão de obra. O profissional vai 2 ou 3 vezes na semana para examinar pessoas e prescrever medicamentos.
Igarassu - Em Três Ladeiras, Igarassu, onde foi detectado surto em 2008, a enfermeira da Unidade de Saúde da Família da comunidade, Silvana Reis, ainda tinha em junho de 2012 na ponta da língua os casos registrados desde então. "São 73 pacientes desde o primeiro caso", diz, com informações seguras sobre a doença. O distrito, com 430 famílias, tem uma maioria de baixa renda, com analfabetos e outros de pouca instrução. A área é vizinha de Araçoiaba e Itaquitinga. Para Silvana Reis, o desmatamento é o inimigo número um da comunidade. "Derrubando a mata, o flebótomo vai atrás de comida e acaba picando o homem", explica. Segundo ela, o pior ano foi 2009. Foram 41 doentes. Ou seja, quase 10% das famílias estavam atingidas pela enfermidade. Em 2012, a ocorrência tem sido menor. Enquanto Silvana Reis relata a história da doença na comunidade, a viúva Lourdes Maria Dias, 54, toma a medicação injetável contra o mal. No ombro expõe a ferida, que já está reduzindo em razão do tratamento. "Moro na Vila Jarapiá. O ruim é quando chega o fim de semana e a gente tem que ir para a Unidade Mista de Igarassu tomar o remédio lá", conta Lourdes. O posto fica fechado sábado e domingo. São nove quilômetros de estrada de barro. Ela tem que gastar R$ 3 de ônibus ou lotação, uma despesa que aperta o orçamento doméstico de famílias que já vivem de programas de transferência de renda. Enquanto uns se tratam, outros vão entrando para a lista de suspeitos. Na mesma manhã da visita ao posto de Três Ladeiras, o médico Geraldo Cintra e a enfermeira Silvana Reis recebem uma criança de 5 anos, levada pela mãe. A garota está há uma semana com uma ferida no pulso, que não sara. "Muitas vezes a família tenta curar o ferimento usando alguma sobra de remédio, de pomada, e isso dificulta a identificação", comenta a enfermeira. Para Silvana e Geraldo, seria essencial que a leishmaniose ganhasse maior atenção das políticas de saúde. Segundo ele, até na faculdade é muito superficial o ensino repassado aos futuros médicos, o que dificulta o diagnóstico. A desinformação também é ruim para a população e os gestores municipais. "As habitações só devem ser construídas a uma distância de 500 metros da mata. É necessário usar repelente, colocar telas nas janelas ou outra proteção", orienta Edileuza Brito, do Aggeu Magalhães.
Leishmania também ataca as vísceras - Desde abril último, outro tipo de leishmaniose, a visceral, que afeta órgãos internos, passou a ter maior visibilidade entre os sanitaristas do setor público em Pernambuco, com o lançamento de um boletim epidemiológico pela Secretaria Estadual de Saúde. A doença, transmitida pela picada do flebótomo (mosquito palha), já causou a morte de 106 pessoas entre 2001 e 2011. No mesmo período foram registrados 1.224 doentes no Estado. As crianças respondem por quase metade dos casos, conforme a Secretaria Estadual de Saúde. E são as menores de 5 anos as mais atingidas. Quando não há tratamento, a mortalidade é de 90%. Febre de longa duração, falta de apetite, emagrecimento, fraqueza, aumento do fígado e do baço são sinais clássicos dessa outra modalidade de leishmaniose, conhecida como calazar, esquecida historicamente nos programas de governo. A causa mais frequente de morte são as enfermidades, como pneumonia, causadas por bactérias. Cães - Como é transmitida com a participação dos cães – a fêmea do inseto pica cães infectados e depois transfere o parasita ao homem –, esses animais também devem ser alvo da vigilância nos municípios. Eles podem não apresentar sintomas. Quando adoecem, têm apatia, lesões de pele, perda de peso e crescimento anormal de unhas. Em Pernambuco, na última década, a leishmaniose visceral canina concentrou-se nos municípios do Sertão (51,1%) e Agreste (37,9%), ficando o Grande Recife e o Litoral com 11% dos casos. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a leishmaniose visceral é doença endêmica com registro de surtos constantes. Antes limitada a áreas rurais, agora se aproxima de centros urbanos, ameaçando um número crescente de pessoas. Amaraji, na Zona da Mata, tem 21.939 habitantes, com 26,9% deles vivendo na área rural e, desses, 31% são crianças e adolescentes com idade até 14 anos. O valor médio do rendimento mensal familiar per capita em área rural foi R$ 176 em 2010, apurou o IBGE. Igarassu, com população cinco vezes maior, de 102.021 moradores, tinha famílias rurais com rendimento médio de R$ 239 no mesmo ano. Cidade da região metropolitana, já tem 92% de seus habitantes urbanizados.

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