por PGAPereira. O que há em comum entre uma agricultora de 34 anos, que
vive em Panelas, no Agreste pernambucano, e um trabalhador do canavial, com 72
anos, nascido em Bom Jardim e criado em Igarassu, no Grande Recife? José Pedro
da Silva perdeu pai e mãe vítimas da doença de Chagas e já sofre as
consequências do mal. Seu coração só bate direito graças a um marcapasso instalado
há quatro anos. Quitéria Rosa da Silva, 34, amarga desde os 19 anos o
diagnóstico da doença. No seu caso, os herdeiros da doença são suas filhas
Aline, de 20 anos, a primogênita, e Bruna, de 6, a nona dos 11 anos que botou
no mundo. Quitéria pode ser o emblema do novo padrão da doença causada pelo
barbeiro. Há chance de suas filhas terem a marca do parasita no sangue
transmitido na gestação. Mas há risco de a família representar também a falha
na vigilância à doença, pois até março deste ano ela vivia numa casa de taipa,
visitada pelo inseto. Além disso, segundo avaliação da Secretaria Estadual de
Saúde, a diminuição do número de domicílios investigados e a manutenção da
proporção de insetos infectados nos últimos quatro anos significam aumento do
risco de transmissão. Apregoado como o fim da doença, o certificado do Brasil
como País livre da transmissão pelo Triatoma infestans escondeu que
outros gêneros podem fazer o papel do aniquilado e que há uma multidão de
crônicos invisíveis, infectados em outras épocas, que precisam ser descobertos
e tratados. Desde os tempos do professor Durval Lucena, que fez o registro
científico do primeiro caso pernambucano, muita gente ainda morre de Chagas e
outros têm diagnóstico tardio da doença.
Multidão de crônicos. Assim como a esquistossomose, a doença de Chagas se perpetua em
famílias pernambucanas, embora desde 2006 o Brasil tenha conquistado o
certificado de fim da transmissão pelo Triatoma infestans, uma das
espécies do barbeiro, conhecido também como bicudo. No Sítio Areias, área rural
de Panelas, Agreste, na casa de Quitéria Rosa da Silva, 34 anos, o mal está
presente no sangue dela, da filha mais velha, Aline, de 20 anos, e da nona,
Bruna, de 6 anos. Não se sabe se as meninas herdaram o problema antes de nascer
ou se foram infectadas depois pelo barbeiro, pois a casa onde moravam até o
início deste ano era de taipa. Caso semelhante foi detectado na cidade durante
o último inquérito nacional sobre a doença, realizado entre 2001 e 2008 no
Brasil. Uma criança e a mãe tinham no sangue anticorpos da doença. Chegamos a
Quitéria, em maio, na segunda expedição jornalística, com a ajuda de um agente
de endemias que se sentia realizado em ver aquela grande família morarem agora
numa casa de tijolos. Quitéria tem ao todo 11 filhos, planta milho, feijão e
recebe Bolsa Família, ajuda mensal dada pelo governo federal. A vida parece
dura, mas ela e as crianças estampam sorriso no rosto, conformadas com a luta.
Descobriu que tinha Chagas no sangue aos 19 anos de idade, depois de ver, na
televisão, reportagem sobre o barbeiro. Ela lembrou que, na casa de barro,
durante toda a sua infância, era o mesmo bichinho que a picava. "Procurei
a Secretaria de Saúde. Naquele tempo não existia agente comunitário",
conta. Ela recorreu ao pessoal da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Exames
de sangue confirmaram que estava infectada. Depois, constatou que a filha mais
velha, já nascida, também tinha o mesmo problema. Mais herdeiros foram nascendo
e a Doença de Chagas mais uma vez se repetiu na nona filha, Bruna. Quitéria só
tomou o remédio contra o parasita (benzonidazol) há dois anos. Faz
acompanhamento no Ambulatório de Chagas do Pronto-Socorro Cardiológico de
Pernambuco. Já tem algum sintoma? "Sinto uma canseira nas pernas e uma dor
de cabeça muito forte", diz, consciente de que não pode se dedicar
totalmente à roça. Mas morando no interior e com o serviço de referência para
Chagas funcionando na capital, não é fácil ir às consultas. Para chegar às 6 horas
no Recife, tem que sair às 2 horas de casa e perder o resto do dia com o
retorno. Um serviço médico próximo de casa é reivindicação da Associação dos
Doentes de Chagas e Insuficiência Cardíaca. O presidente é José Pedro da Silva,
73 anos, nascido em Bom Jardim, onde foi confirmado o terceiro portador do mal,
na década de 40. Originário da Zona da Mata, ele tem sequelas de
esquistossomose e de doença de Chagas. Usa marcapasso para compensar o estrago
no coração. "Na década passada, conseguimos que a Prefeitura de Igarassu
abrisse um ambulatório só para os chagásicos, como eu, que sou morador de lá.
Mas, com a mudança de prefeito, o atendimento foi suspenso."
Na cidade de Tabira, que enterra por ano, em média, quatro vítimas do
mal de chagas, facilmente nos deparamos com famílias e ruas marcadas pela
doença. Antes de ir a um posto de saúde, arriscamos perguntar na entrada da
cidade a um grupo de mototaxistas se conhecia algum falecido ou doente. Um
levantou o braço e falou do sogro, morto há três anos. O outro apresentou a
irmã, que tem a doença e não consegue se aposentar. Maria José Ferreira, 77
anos, confirma que o marido faleceu do mal de Chagas em 5 de novembro de 2009.
Ela não esquece a data nem o sofrimento do esposo. José Paulino Sobrinho, o
marido dela, sofreu um infarto e a partir dos exames descobriu que também tinha
Chagas. Em duas décadas, trocou de marcapasso três vezes. A viúva mora numa
casa de alvenaria, mas se lembra dos bicudos. "Paulino nasceu em Boi
Velho, na Paraíba. Vivemos muito tempo num sítio, já em Tabira, onde os bicudos
viviam na parede", conta. A cerca de 200 metros dali, mora Aretuza Maria
de Lima Daniel. Aos 44 anos, mãe de um filho, sofre com arritmia. Natural de
Serra Talhada, morou até os 16 anos naquela cidade, numa casa de taipa, no
Sítio Beira do Rio. Agora vive com o marido numa casa de tijolos em Tabira e
trabalha numa fábrica de pipocas. Embora jovem, já sofreu Acidente Vascular
Cerebral várias vezes e tem sequelas do mal de Chagas no coração.
"Trabalho porque preciso. Mas não tenho mais condições", diz. Ela
tenta sem sucesso a aposentadoria por invalidez. Como não há médico no posto
próximo de casa, paga consulta particular e exames que a Previdência Social
exige. "Gastei recentemente R$ 500 para fazer eletrocardiograma,
ecocardiograma e exame de esteira." Em São José do Egito, os portadores do
mal também estão à vista. No Posto de Saúde da Família de Planalto, bairro
populoso, há vítima de Chagas até entre os agentes de saúde. Rizomar Ferreira
Leite, 53 anos, acredita que só vai parar de trabalhar "quando estiver no
caixão". A doença que já matou o pai dela causa danos ao seu intestino. Na
rua seguinte, Maria Dulce Ferreira, 68, natural de Teixeira, na Paraíba, tem
Chagas e também perdeu o pai pelo mesmo problema. Acredita que foi picada pelo
barbeiro quando era mais jovem e morava num sítio em Itapetim. Está em São José
do Egito há sete anos. Foi nessa cidade que começou a sentir os efeitos da
doença. "Passei cinco dias vomitando e comecei a sentir cansaço",
relata. Ela usa marcapasso e toma sete medicações compradas.
Em Timbaúba,
na Zona da Mata, cidade onde viveu o primeiro doente de Chagas cientificamente
comprovado em Pernambuco, por Durval Lucena, em 1940, encontrou Luíza Maria de
Lira. Aos 67 anos, ela descobriu há 40 que tem o mal. Guarda até hoje o exame
que lhe deu o diagnóstico, a reação de Machado e Guerreiro, técnica não mais
utilizada. Toma 20 remédios por dia, para controlar também pressão e diabete.
"A Doença de Chagas está controlada, a diabete é que não está", diz a
filha Rosilane. Mãe de adolescente, Rosilane e suas três irmãs nunca fizeram
exame de Chagas. Saindo do Centro, tomamos o caminho da zona rural, onde casas
de tijolos estão sendo construídas em substituição às taperas que os barbeiros
costumam visitar. Próximo às ruínas de uma estação de trem, a idosa Maria
Davina da Silva, 88 anos, ainda reside em casa de taipa. Na casa dela ninguém
tem Chagas, mas ela se lembra do "percevejo de cadeia, chupão, bicho do
casco duro". Em Espinho Preto, José Pedro da Silva, ou Pociano, como é
conhecido, confirma que ficou viúvo há seis anos. A esposa, Cícera Minervina da
Silva, passou sete anos inchada, cansada, até que o coração não resistiu. Morreu
morando numa casa de barro, onde a filha Damiana Cícera da Silva, 34 anos,
ainda vive. "Vi minha mãe sofrer muito. Não quero ter essa doença",
diz, sem ter testado seu sangue até então. Timbaúba, Zona da Mata Norte, tem
53.825 habitantes, desses, 7.458 (13,9%) estão em área rural. O Censo 2010 do
IBGE encontrou, no território, 217 casas de taipa com revestimento e 61 sem
reboco, servindo de habitação para 1.500 pessoas. Serra
Talhada,
no Sertão do Pajeú tem 79.232 moradores. São quase mil habitações de taipa na
cidade polo da região. Panela, no
Agreste, tem população de 25.645 habitantes e 98% deles já
vivem em casa de alvenaria, conforme o IBGE. Há 57 imóveis com paredes de
barro, onde moram 306 pessoas.
Barbeiro segue a urbanização. Em Serra Talhada, a 420 quilômetros do
Recife, no Sertão do Pajeú, a Secretaria Municipal de Saúde já detectou
barbeiros na área urbana da cidade. "Ainda não podemos dizer que estão se
reproduzido, não identificamos colônias que poderiam confirmar essa situação",
explica Aron Araújo, responsável pela vigilância epidemiológica. O
secretário-adjunto de Saúde, José Alves, teme que um dia isso possa ocorrer. E
aponta um fator determinante: o avanço da urbanização, que desmata e desaloja
os insetos. O desmatamento para exploração imobiliária, que cresceu com a
criação de novos campus universitários e obras da Ferrovia Transnordestina,
retirou os insetos do seu habitat natural. O cinturão periférico do Centro é
ocupado por pessoas que deixam a área rural, trazendo galinhas, cachorros,
chiqueiro, mantendo, portanto, hábitos que atraem os barbeiros. Conforme a
Secretaria Estadual de Saúde, o índice de residências com barbeiros tem se
mantido em torno de 9%. Dos insetos capturados, 6% estão infectados pelo
parasita causador da doença. "Desde o ano passado, temos fortalecido as
ações de controle do vetor, o que deverá implicar na redução do percentual de
barbeiros", informa José Alexandre Menezes, coordenador do Programa de
Enfrentamento das Doenças Negligenciadas. A redução do número de domicílios
visitados e a manutenção do percentual de positividade dos vetores, ao longo
dos últimos quatro anos, segundo Menezes, "significam aumento do risco de
transmissão, daí a necessidade de fortalecer a vigilância pelos
municípios". Em 2007, 132.699 imóveis foram inspecionados. Dois anos
depois, os domicílios visitados somaram apenas 104.998, mais de 28.000 a menos.
Oficialmente não têm sido registrados casos de transmissões recentes. No
Ambulatório de Chagas do Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco, são 1.150
chagásicos matriculados. Wilson Oliveira, cardiologista que coordena o serviço,
acredita que a enfermidade permanece sendo negligenciada. "Mas pela
primeira vez estou vendo interesse maior em melhorar a assistência",
reconhece. O serviço foi certificado recentemente pelo Ministério da Saúde como
referência regional.
Descentralização. Apesar da larga experiência e da referência para casos agudos e
crônicos de Chagas, o ambulatório tem déficit de pessoal. Como trabalha com
equipe multidisciplinar, precisa de enfermeiros, psicólogo, assistente social e
de educador físico. Wilson Oliveira defende que os chagásicos passem a ser
acompanhados pelo Programa Saúde da Família ou por outro serviço de atenção
básica perto de casa, ficando para o Procape os casos mais complexos. Outro
desafio é encontrar médicos dedicados. "É pequeno o interesse diante de
doença negligenciada", diz o especialista, que fundou o serviço em 1987.
"Há 40 anos usamos o mesmo remédio. Já deveríamos ter uma droga com menos
efeitos adversos", completa. O coordenador do Sanar responde que estão
sendo realizadas ações para melhorar a qualidade do diagnóstico, com uma rede
de referência para a vigilância e tratamento das pessoas com a doença. Uma das
metas do Estado é a descentralização da oferta de sorologia para Chagas nas
regionais de saúde.
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