Por PGAPereira. Longe das epidemias relatadas
pelos oftalmologistas pernambucanos Altino Ventura e Clóvis Paiva nas décadas
de 40 e 50, o tracoma, outra doença do passado, faz parte do presente. O
Programa de Enfrentamento das Doenças Negligenciadas da Secretaria de Saúde de
Pernambuco (Sanar) tem submetido a exame de vista crianças matriculadas em
escolas públicas e já encontrou, num mesmo lugar, até 10% delas com o problema.
Jean Victor (foto), morador de Bodocó, é uma das vítimas.A doença, repetidas
vezes, deixa a pessoa cega, o que leva a Organização Mundial de Saúde a
estabelecer como meta para 2020 a erradicação de toda perda de visão em razão
do tracoma. É causada por uma bactéria _ Chlamydia trachomatis _ que teria sido
introduzida no Brasil no século 18, com as migrações europeias. Em São Paulo,
no ano de 1904, o governo impediu a entrada de imigrantes doentes no Porto de
Santos. A medida, no entanto, caiu rapidamente, diante da pressão de
cafeicultores, que precisavam da mão de obra estrangeira.No livro Geografia da
Fome, publicado em 1946, Josué de Castro cita o tracoma ao descrever as doenças
que acometiam a população pobre do Sertão, desprovida de água, principalmente a
região do Cariri, no Ceará. Em Pernambuco a falta de saneamento básico –
sobretudo, acesso à água tratada, para possibilitar a lavagem de mãos e do
rosto – ainda é forte."Tracoma é doença relacionada diretamente às
condições de vida. Não é só falta de higiene. Não é só falta de educação
doméstica. É propiciada pela falta d’água", diz Gisele Campozana, da
Fiocruz. Em pesquisa de campo, ela diz ser muito comum ver criança com o rosto
sujo. Gisele vai coordenar um inquérito nacional financiado pelo Ministério da
Saúde, no qual Pernambuco está incluído.O coordenador do Projeto Sanar, José
Alexandre Menezes, observa também componente cultural na incidência atual do
tracoma. "Os hábitos permanecem mesmo com o acesso à água", relata. Segundo
ele, entre 2011 e o primeiro semestre de 2012, foram realizadas ações em 15 dos
22 municípios prioritários, examinando 53.777 estudantes de 494 escolas.
Desses, 1.440 tinham a doença e receberam tratamento, assim como os familiares.
A média é 2,7% de infectados. A OMS considera elevada acima de 5%. Dois
municípios apresentaram taxas superiores.
Mais de 1.000 infectados. No Araripe,
região pernambucana muito próxima do reduto cearense que abrigou o tracoma no
século passado, relatos são raros sobre doença recente. Só os mais velhos fazem
referência ao tempo em que muita gente vivia com o olho inchado, coçando. Na
vila urbana de Serra Branca, em Ipubi, a 662 quilômetros do Recife, o
marceneiro Alfredo Graciano de Oliveira, 79 anos, recorda: "Era tanta
gente sem pestana, corria aquela água velha". A vila, que tem uma fonte de
água mineral, não sofre o impacto direto da seca. É atendida por poços
artesianos e na estiagem do presente, a maior dos últimos 30 anos, gaba-se de
ter frutas no quintal (manga, seriguela, goiaba). Mas só água não significa
prosperidade. As famílias vivem do Bolsa Família, do salário de professor ou
funcionário público. Uma agente de saúde, de 40 anos, não se lembra de ter
visto tracoma, mas cita que vez ou outra há surtos de conjuntivite no distrito.
Conta que não recebem visita de oftalmologistas e quem prefere a consulta com
especialista tem que pagar médico particular. A visita porta-a-porta, para a
entrega de pomada oftálmica (com antibiótico), deixou de ser feita quando as
ações de saúde saíram das mãos da antiga Sucam (Funasa) para a prefeitura,
mudança introduzida com a municipalização preconizada no SUS. Na região dos
sítios, a situação vai mudando de figura. Em Serrolândia, as consequências da
seca estão à mostra na paisagem e nas casas. Maria Rita Ferreira, 51 anos,
natural de Exu e que vive em Serrolândia desde a juventude, diz que é comum
haver problema nos olhos, com coceira e vermelhidão. Ela preside a Associação
de Pequenos Produtores Rurais da Serra de Primavera (distrito de Serrolândia),
em Ipubi. Para as 96 famílias que lá vivem falta muita coisa. A irmã dela,
Lucilene Gonçalves, de 31 anos, mãe de 4 filhos, conta que todos tiveram
problema nos olhos. "Quando eu era pequena me davam pomada de terramicina.
Agora, boto sal", diz. A água que abastece as casas é de barreiro. O
carro-pipa, a R$70,00 têm que dar para 60 dias.
Profissionais
de saúde da 9ª Geres, em Ouricuri, explicam que Araripina, Ipubi, Exu, Bodocó e
Moreilândia têm bolsões de tracoma. No último inquérito realizado em 2006, em
Bodocó, 5% das crianças estavam com a enfermidade. "É uma doença da falta
d'água, de saneamento básico. Eles usam água de poço, cacimba. Utilizam a água
da mesma bacia para fazer a limpeza das mãos e do corpo, compartilham a toalha.
É uma doença de pé de serra, de mosquito remelento", conta um dos
trabalhadores do SUS. A orientação é de não compartilhar a toalha e retirar a
água com um caneco em vez de reutilizar na bacia para várias pessoas. Exames
feitos em 2011 detectaram cinco casos em Bodocó. Foram mais de 600 crianças
examinadas, de primeira a quarta série, de 7 a 14 anos, em oito escolas. Um
deles foi recebido com surpresa pela professora Maria das Dores Albuquerque. O
filho dela, Jean Victor, de 8 anos, que para a família tinha um problema
alérgico nos olhos, foi incluído entre os positivos. Embora bem informada e
orientada, Maria das Dores não tem água encanada. A fonte de abastecimento
doméstico é uma cisterna que secou. O garoto já recebeu o tratamento
preconizado, um comprimido de antibiótico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário