Ao entrar em um supermercado e caminhar entre
frutas, verduras e legumes, é possível que você já tenha notado gôndolas
destinadas apenas a alimentos orgânicos, que, dentre outras coisas, são
cultivados sem o uso de agrotóxicos – assunto que vem ganhando destaque ao
longo dos últimos anos no Brasil. As atenções dos holofotes direcionam-se a
constatações como a da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco): um
dos maiores problemas no Brasil é o uso de muitos princípios ativos que já
foram banidos em outros países. De acordo com um dossiê da
Associação, dos 50 produtos mais utilizados nas lavouras brasileiras, 22 são
proibidos na União Europeia, o que faz com que o país seja o maior consumidor
de agrotóxicos já banidos em outros locais do mundo. “Quando um produto é
banido em um país, deveria ser imediatamente em outros. Quando chega ao Brasil
para fazer o banimento é um luta enorme das entidades sanitárias”, diz
a médica toxicologista Lia Giraldo, da Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz/ Ministério da Saúde). Em 2011, uma pesquisa conduzida pela
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) em parceria com a Fiocruz comprovou
que até mesmo o leite materno pode conter resíduos de
agrotóxicos. O estudo coletou amostras em mulheres do
município de Lucas do Rio Verde/MT, um dos maiores produtores de soja do país.
Em 100% delas foi encontrado ao menos um tipo de princípio ativo. Em algumas,
até 6 tipos. Hoje, é difícil dissociar safras recordes e indústria química,
responsável pela fabricação de herbicidas, inseticidas e fungicidas que matam e
controlam a disseminação de plantas daninhas, insetos e fungos nas plantações.
Só em 2012, 185 milhões de toneladas de grãos foram colhidas no Brasil. Números
tão expressivos se justificam para além das extensões continentais do território
brasileiro. Um sem-fim de opções tecnológicas para evitar perdas de produção
está disponível aos agricultores. Dentre elas, mais
de 1.640 agrotóxicos registrados para uso.
Um dos pontos importantes do processo
político de incentivo ao uso de venenos no Brasil aconteceu na época do regime
militar, quando, em 1975, foi instituído o Plano Nacional de Defensivos
Agrícolas, que condicionava a obtenção de crédito rural
pelos agricultores ao uso dos produtos químicos nas lavouras. “Foi também nesta
época que apareceram as primeiras denúncias de contaminação de alimentos e
intoxicação de trabalhadores rurais”, explica o engenheiro agrônomo e consultor
ambiental Walter Lazzarini, que teve participação ativa na formulação da Lei
dos Agrotóxicos brasileira (7.802) em 1989. A lei vigora até hoje, com algumas
mudanças no texto original. O gargalo, porém, fica visível no cumprimento
do que prevê a legislação. “Existe um descompasso entre a
regra e os mecanismos para cumpri-la. O país investe menos do que deveria em
fiscalização e monitoramento”, comenta Decio Zylbersztajn, professor e criador
do Centro de Conhecimento em Agronegócios da FEA/USP. Um estudo da USP revela
que, entre 1999 e 2009, o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas
(Sinitox) registrou 62 mil intoxicações por agrotóxico no país – uma
média de 15,5 por dia. Apesar
de altos, os números não refletem totalmente a realidade, já que projeções do
próprio Sistema indicam que para cada caso de intoxicação notificado, 50 acabam
no desconhecimento. “Faltam dados de registro das intoxicações para suportar a
necessidade de uma política de fiscalização na aplicação”, alerta Lazzarini. A
repercussão dos números levanta debates entre movimentos civis e órgãos
regulatórios. Aumentar a rigidez das fiscalizações e proibir o uso dos produtos
químicos já banidos em outros países são algumas das exigências da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e
Pela Vida, que reúne
entidades, organizações civis e comunidade científica em Comitês Populares
presentes em quase todos os estados brasileiros. Outra proposta da Campanha é a
rotulação dos produtos alimentícios com as informações sobre os agrotóxicos utilizados.
Saúde é quantificável? - Para a aprovação de novos agrotóxicos, são
obrigatórios estudos conduzidos em animais de laboratório, que supostamente
indicam a quantidade máxima de resíduos que uma pessoa pode consumir por dia. É
o IDA: Índice Diário Aceitável.
De acordo com a Anvisa, a ingestão dentro do
índice não causa dano à saúde. Mas a médica Lia Giraldo contesta a sua
eficiência, uma vez que os testes não levam em conta concentrações prolongadas,
mesmo que baixas. “Criou-se uma teoria de que o efeito é decorrente da
quantidade e não do produto, das reações químicas. É
uma teoria científica muito linear, dose-efeito, como se tudo dependesse só da quantidade.
Essa ideia ainda está vigente na regulamentação”, explica. “O que se faz para
aceitar os agrotóxicos no mercado são estudos experimentais em animais que tem
vida muito curta. Não há tempo para eles desenvolverem as doenças crônicas
degenerativas que os humanos manifestam por viverem mais”. A intoxicação
crônica, que se desenvolve ao longo de meses, anos ou até décadas, pode levar a
doenças hepáticas e renais, câncer, malformação congênita, problemas de
fertilidade, reprodução, além de distúrbios neurológicos, mentais e endócrinos.
“Considero que os indicadores fazem uma inversão de complexidade. É anticientífico. Um
ser humano é diferente do outro, cada organismo vai manifestar as alterações na
sua singularidade. A
saúde plena não pode ser garantida, mesmo se o indicador for respeitado”,
diz Lia. Um exemplo: o índice chega a um valor que permite que as pessoas comam
um tomate e não morram intoxicadas. “Mas isso não quer dizer que se você comer
um tomate todos os dias ao longo de anos você não desenvolva um câncer”,
explica a médica. “Não existe quantidade ‘menos pior’.
Temos que ser críticos. Há uma convenção baseada em um indicador que não tem
sustentabilidade científica, embora se utilize de uma determinada ciência pra
justificar sua existência”. Além disso, analisar e identificar os efeitos
combinados de diferentes substâncias químicas, em situações distintas de
exposição (ar, água, solo, alimentos), são verdadeiros desafios para a ciência
chegar a números que possam ser considerados seguros. “No cozimento quanto é
degradado e se transforma em outras substâncias que podem ser até mais tóxicas?
O ideal é garantir que não tenha resíduos, e pra isso seria necessário não ter
agrotóxicos”.
Leonardo Melgarejo, engenheiro agrônomo que
representa o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) na Comissão Nacional
de Biossegurança (CTNBio), também defende que “é equivocado supor que pequenas
doses de veneno devem ser aceitas nos alimentos porque
causam pequenos danos”. Para ele, a alternativa é buscar produtos
orgânicos, que devem (e podem) ser disponibilizados para todos. “A produção em
policultivo é maior por unidade de área, mais intensiva em mão de obra e menos
demandante de insumos externos. Com ela é possível gerar ocupações produtivas,
ampliar a oferta de alimentos e minimizar riscos de intoxicação, custos com a
saúde”. Lavar
os alimentos resolve? Na verdade, a prática é importante
apenas para higienizá-los, mas não retira os produtos químicos, já que os
resíduos circulam nos tecidos vegetais pela seiva. “O agrotóxico é utilizado
por todo o ciclo da produção e atinge a planta sistemicamente”, explica a
médica. A Anvisa também alerta que mesmo os chamados agrotóxicos “de contato”,
que agem externamente no vegetal, podem ser absorvidos pelas porosidades da planta. A Agência aconselha que produtos in
natura devam vir de fornecedores qualificados pelo cumprimento das
Boas Práticas Agrícolas, como o respeito ao período de carência (intervalo
entre a aplicação do agrotóxico e a colheita). Editor PGAPereira.
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